11 - RECORDO O QUE AINDA NÃO VIVI




O dia amanheceu frio e tristonho na aldeia, mas Lavinhos necessita de dias assim para se entreter a aquecer as lembranças seguindo à boleia das tempestades. Muitos aldeões aproveitam os invernos rigorosos para descascarem a memória às camadas. Todos os que vivem e cresceram em Lavinhos sentiram uma vontade imensa de lá escapar, e quiseram cortar as amarras com que a natureza os prendeu àquela terra distante e isolada.
Marília foi quase sempre imune às intempéries, era um castanheiro de raízes profundas, era um ouriço-cacheiro, um licranço, um açor, por vezes a raposa atrevida que saltava alegremente pelos campos, e isso era tudo o que a fazia feliz.
Os pensamentos do irmão congelaram com os acontecimentos da madrugada. Cinco “estrangeiros” com roupas luminosas apareceram do nada e barraram-lhe o caminho poucos metros à sua frente. Ao início pareceram-lhe pequenos, mas depressa as suas silhuetas cresceram até atingirem uma altura desumana. Ficaram ali parados com as pernas e os braços tentaculares a rodopiarem em várias direções, esfíngicos e alabastrinos, com uns olhos gigantes mas quase inexpressivos. A roupa que trajavam mudava rapidamente de cor, apesar de ser o amarelo a que mais predominava.

- Tu és mesmo um gajo com muita piada, e as histórias que tu contavas ainda me fazem recordar, como se fosse agora, aqueles dias inteiros de brincadeiras sem fim. Gostavas imenso de contar aquela história de piratas e do tesouro que eles tinham escondido algures nas redondezas da nossa aldeia… e eu jamais duvidei da sua veracidade. Para mim, tudo o que dizias acerca de todas as coisas fazia sempre sentido, e tu sabias tão bem inventar histórias e aventuras mirabolantes.
O António Faneca parecia não ter envelhecido. Os seus olhos brilhantes ainda iluminam os dias do poeta da mesma maneira, apesar da tragédia que foi o seu inesperado desaparecimento. Não teve grande sorte na vida, o Toninho, nem com os médicos que o assistiram, nem com a doença maldita que depressa o levou.
O menino jura a pés juntos que o Faneca é uma daquelas cinco estranhas criaturas luminosas que está plantada à sua frente no meio do caminho, ou então está novamente a inventar histórias para conseguir encarar a realidade.
- O meu amigo Toninho cresceu, veio do futuro para levar Marília no funil voador. Eu sabia! Sempre suspeitei que era possível o ser humano viajar entre tempos, só que ainda ninguém sabe como fazê-lo… talvez seja mais fácil viajar do futuro para o passado que do presente alcançarmos o futuro. Como é que o Toninho Faneca conseguiu esta proeza mirabolante?
Os “estrangeiros” pairam no ar enquanto crescem em altura. Os seus corpos estão cada vez mais longilíneos e disformes, os pescoços estreitos e muito finos  conseguem suportar as cabeças com alguma dificuldade, até ao momento em que estas começam a levitar, autónomas, e se aproximam do menino poeta.
Os corpos desaparecem e as cabeças avançam vagarosamente, umas atrás das outras, até formarem um círculo à volta do menino, que deixou de sentir as pernas e está sentado no chão húmido e enlameado. As cabeças voadoras transformam-se em mochos grandes, formosos e elegantes, crescem agora as asas de um mocho ao menino poeta, crescem penas, as suas pequenas orelhas estão espetadas no ar e os olhos ficam ainda mais redondos e abertos. Pinta-se de vermelho o branco que neles há, a roupa que veste deixa de lhe servir e ele desaparece a voar, com os seus cinco novos companheiros, para muito longe das serras que ladeiam Lavinhos e as aldeias vizinhas.
Os seis voam pelo interior das florestas a piar às montanhas e às serras..  
O funil voador mimetiza-se com a mesma cor do céu da madrugada. Deixa de brilhar e de piscar, está no mesmo lugar de sempre, só que ninguém o consegue vislumbrar se olhar para ele.

- Raúl. Ama-me sempre de madrugada! Não te esqueças, homem, não te esqueças disto que eu te estou a pedir.
Madalena tremeu da cabeça aos pés. Passaram alguns anos desde a última vez que se sentiu assim. Ela sabe ao pormenor tudo aquilo que está para acontecer, conhece os gestos íntimos de Raúl antes dele os praticar, tem a certeza que já esteve aqui, neste lugar, numa outra vida ou nesta mesma vida que é a sua de agora, a recordar a vida que está para chegar.
Madalena sabe que Marília voará para a montanha para se encontrar com os animais que lhe contam as histórias e os vigiam durante as madrugadas. Quando o sino da igreja tocar a próxima Ave Maria, Marília partirá para onde os silêncios escurecidos da floresta melhor se conseguem escutar, e o irmão poeta a seguirá.
Madalena sabe que os seus mochos partirão, e que depois irão voar silenciosamente por cima da casa. E será nesse momento que ela perguntará a Raúl se ele deu conta dos pássaros, e se reparou como era intenso e vermelho o seu olhar.

Comentários